O Brasil não tem subprimes
Fazia tempo que não criticava um artigo do Clóvis Rossi aqui no blog, estava tentando parar com esse vício, mas hoje o czar opinativo da Folha incorporou o Chacrinha (aquele que veio para confundir, não para explicar), e não deu para ficar quieto – aliás, sempre baixa o santo do Velho Guerreiro no CR quando ele tenta explicar a crise econômica. Segue o artigo e, em seguida, meus comentários:
Também temos subprimes
SÃO PAULO – Demorou mas surgiram os nossos “subprimes”, vítimas da incapacidade de pagarem seus automóveis.
É a diferença de escala entre a economia norte-americana e a brasileira: lá, o pessoal perde casas, um bem de muito maior valor.
Cessa aí, no entanto, a comparação. Os automóveis recuperados pelos bancos não têm, por trás, um rolo de ativos ditos tóxicos como os que caracterizaram a crise norte-americana das hipotecas “subprime” nem um volume tão formidável (pelo menos até agora).
Mas nem por isso o problema do crédito ou, mais exatamente, da falta dele e/ou de seu encarecimento deixa de ser sério, a julgar pelo que escreve Roberto Luis Troster para o mais recente boletim da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP: “Uma deterioração do crédito era esperada por conta da piora do quadro econômico, mas não na proporção que está acontecendo, especialmente para os microempresários e para as pessoas físicas de renda média e baixa. A cada mês que passa, as taxas dos financiamentos aumentam, sua composição deteriora-se e a inadimplência sobe.”
O economista dá números que ajudam a entender a inadimplência e a consequente retomada dos automóveis: são os pequenos tomadores os mais afetados, conforme relatório do Banco Central que mostra que aumentou 5,1% o volume de operações acima de R$ 10 milhões, mas diminuiu 2,7% no caso das inferiores a R$ 5.000.
Ou, pondo no estilo Elio Gaspari: o andar de cima ainda se financia, mas o andar de baixo é cada vez mais “subprime”.
PS – Cometi ontem um erro brutal. Escrevi: “[Os mercados] insistem em socializar o risco e privatizar o prejuízo”. É óbvio que deveria ter escrito “…privatizar o lucro”, como o fiz já várias vezes. Perdão.
Comento:
Em primeiro lugar: nós não temos subprimes. Dizer isso é alarmismo inconsequente, os carros financiados não tem nada a ver com os subprimes hipotecários estadunidenses. Lá, o cara comprava uma casa financiada por US$100mil, não pagava, a casa era reavaliada para US$150mil, o “ganho imobiliário” quitava as prestações atrasadas, o refinanciamento não era pago de novo, a casa era re-reavaliada para US$300mil, o cara não pagava mais uma vez, e a coisa ia assim, indefinidamente. No fim da história, havia imóveis milionários com financiamentos idem, ambos fictícios. Essa foi a “crise dos subprimes”, o primeiro estágio da crise econômica global em curso (depois, vieram as crises das commodities, dos derivativos, dos bancos, do consumo, e a crise de confiança, o lamaçal em que os EUA estão nesse momento). No Brasil, o que está ocorrendo é que tem muita gente que não consegue pagar a prestação do carro e acaba tendo que entregar o veículo para a financeira/banco/leasing. Esse carro não foi superavaliado, muito embora seu valor tenha sido reduzido por uma questão de mercado. A maior parte da dívida correspondente ao financiamento de veículos no Brasil está nos FIDCs (fundos de investimento em direito de crédito), que não podem realizar operações de derivativos, que turbinaram as perdas nos EUA. Resumindo: o título e o primeiro parágrafo do artigo do CR são sensasionalistas e profundamente errados.
Mas aí vem o mestre da ambiguidade e escreve um segundo parágrafo desdizendo o que inicialmente disse, um truque comum deste colunista. Fala que não temos “ativos tóxicos” e que os volumes brasileiros são bem menores que os estadunidenses… Então por que a manchete sensacionalista, señor Rossi??? Mas a artimanha é muito mais elaborada, pois ele continua o artigo desdizendo o que desdisse, e retornando ao terrorismo econômico (e saidno completamente do assunto original, os subprimes brasileiros), como veremos.
A citação e os números estão certos, só que faltou explicá-los de maneira adequada. O aumento do crédito para as grandes corporações decorre da escassez de linhas externas, não um aumento da demanda real desse segmento. Ora, se um banco direciona bilhões adicionais para empréstimos ao segmento corporativo, ele vai ficar com menos disponibilidade para emprestar para os outros segmentos, essa é a causa primeira da redução do crédito para os pequenos empresários e as pessoas físicas. Ora, e se a oferta de crédito para os pequenos diminui, quem “está na bicicleta” (refinanciando dívidas antigas e empurrando o débito com a barriga) acaba explodindo, daí o aumento na inadimplência. É um problema grave, mas nada a ver com os supostos subprimes brasileiros, de que o artigo supostamente trata. O Brasil não é imune à crise e temos nossos problemas, mas que fique bem claro: nós não temos subprimes!!!
Lanterna na proa*
Na década de 1960, antes dos exames de ultra-som, havia um médico (clínico geral) em Rio Preto que acertava em 100% das vezes o sexo do bebê. Ele olhava para a mãe logo que esta sabia estar grávida e dizia, enigmaticamente: “é menino” (ou “é menina”), e em seguida pegava a ficha da paciente e anotava o palpite, à caneta, pedindo que a paciente retornasse ao consultório após o parto. O detalhe é que esse médico anotava na ficha o palpite oposto do que ele informara de viva voz, ou seja: se ele dissesse que era menino, ele anotava menina, e vice-versa. No retorno, duas coisas poderiam acontecer: 1)a paciente estava feliz porque o médico acertara, ou 2)ela estava indignada com o erro do profissional. No primeiro caso, era só festa; mas se a mãe estivesse decepcionada com o prognóstico errado do médico, este abria o arquivo, pegava a ficha, e dizia: “Moça, acho que a senhora estava nervosa e se confundiu… Olha aqui a ficha: eu anotei menino e não menina, como a senhora estava achando” (ou o contrário). Constrangida, a mãe voltava para casa convencida de que ela é que havia entendido errado.
Muitos profissionais da incerteza têm esse tipo de estratégia. Eu poderia, por exemplo, me consolidar como um vidente de sucesso, adivinhando quem será o campeão paulista de futebol de 2009. Se eu publicar nos classificados da Folha que o Palmeiras será campeão, no Estadão que será o São Paulo, no Diário de S.Paulo, o Crinthians, e assim sucessivamente, eu terei provas do meu acerto qualquer que seja o resultado. Como os jornais que estampavam um resultado diferente do verificado já estariam no lixo (e ninguém guarda classificados de “declarações à praça”, a não ser o próprio interessado), eu, que guardei todos eles, escolheria o que me convém e pronto, nasceu um vidente. O grande problema desta estratégia é que eu só conseguiria sucesso uma única vez. No ano que vem, quando eu fosse fazer as previsões para 2010, as pessoas provavelmente estariam atentas para declarações em meu nome, e logo perceberiam o engodo (risco que o médico do parágrafo acima não corria, já que as informações dele eram privadas).
Economistas, de uma forma geral, utilizam estratégias mais arriscadas para conseguir fama. Sou viciado em sebos, e veja o livro que encontrei um dia desses:
Ravi Batra, atualmente professor da prestigiosa Universidade Metodista Sulista em Dallas, Texas, previu um cataclisma na economia estadunidense nos anos 1990. Abarrotado de tabelas, gráficos e equações, o livro de Batra tinha tudo para ser um bestseller global, e seu autor um sério candidato ao Nobel, não fosse por um pequeno detalhe: os anos 1990 foram espetaculares para os EUA. Houve crise no México, na Rússia, nos “Tigres Asiáticos”, e o Brasil sofreu com a era Collor (e depois com a estagnação dos anos FHC), mas o foco do trabalho de Batra, os EUA, foram de vento em popa. (O que me assusta é que o mais novo lançamento de Batra é “The New Golden Age”, lançado em abril de 2008).
Hoje em dia, Nouriel Roubini desponta como o grande gênio da crise dos sub-primes. Foi ele quem alertou o mundo sobre o precipício logo em frente, mas ninguém deu atenção às suas sábias palavras. Curioso que o próprio Roubini não ouviu sua voz, já que se tivesse ouvido poderia ser o homem mais rico do mundo atualmente, apostando no mercado a termo ou de opções contra o Dow Jones. (Mas não se engane, mr. Roubini é um professor pardal da academia que não tem tempo para essas coisas mundanas como o dinheiro, como se percebe na foto abaixo). Agora, esse economista faz um novo alerta: “o mundo vai levar entre 18 e 24 meses para sair da crise”. Anotem isso em suas cadernetas! (Aliás, anotem também que eu estou prevendo que haverá inundações em grandes cidades do Brasil no início de 2009, devido às fortes chuvas que ocorrerão no próximo verão).
Varrendo a web para ver se achava alguém que não incenssasse Roubini, encontrei uma voz dissonante: Stephen Kanitz, que publicou um execelente artigo sobre o tema no seu site. Conheço o Kanitz, essa lenda do mundo dos negócios desde os anos 1980, quando era estudante de administração da FEA-USP, e ele um dos professores mais famosos da mesma instituição. Tornei-me amigo do Stephen uns anos atrás, ao comentar um artigo que ele escrevera na Veja, e acabamos fazendo uma viagem juntos no ano passado, para Williamsburg (EUA), onde participamos de uma conferência sobre Evolução & Comportamento. Numa tediosa viagem de trem entre Washington e Williamsburg, o Kanitz me convenceu porque não se deve confiar em economistas como o Batra ou o Roubini (sim, eu também ia na onda desses caras há até um ano e meio atrás): estes sujeitos são oportunistas, como o médico de Rio Preto do início deste artigo, e ficam cavando oportunidades para aparecer na mídia como os verdadeiros profetas o tempo todo (é aquele negócio: até um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes por dia). Simplesmente não existe esse negócio de previsão econômica do tipo Batra/Roubini, o que existe é chute que, por acaso, acerta o gol. Se você ainda duvida, leia “A lógica do cisne negro”, do Nassim Nicholas Taleb (ou assista à minha resenha do livro, abaixo). Depois não digam que não avisei.
*”Lanterna na proa” é um trocadilho com o título do último livro do Roberto Campos (aliás, sua autobiografia), o pai de todos os economistas do tipo Batra/Roubini.
Pitacos sobre a crise
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José ?
e agora, você ?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José ?
(C. D. de A., “José”)
Os mercados financeiros faliram, a recessão bate à porta, o crédito está suspenso até segunda ordem, e as commodities não valem mais nada – ou seja: o caos está instalado na economia mundial. Fala-se em um novo Bretton Woods para desmontar a estrutura criada em 1944 (que, na prática, não existe mais: até o Lula sabe que o FMI não serve para nada hoje em dia), mas ninguém tem a mínima idéia sobre o que colocar no lugar. Uma mega-agência regulatória global? Um FMIzão turbinado para socorrer todo mundo, inclusive os EUA? Ah, que falta faz um Keynes nessas horas… Jornalistas vestidos com a surrada camiseta do Che Guevara, como o Jânio de Freitas, da Folha, sugerem o “fechamento dos cassinos” (bolsas de valores) como medida número um (se você não acredita, leia o artigo do referido na Folha de hoje [disponível aqui, para assinantes] – que, a propósito, está muito bom na sua segunda parte, em que faz uma análise da disputa política na aldeia). Economistas “sérios” como o Roubini (vide foto abaixo), incensado como o único cérebro pensante da atualidade, dizem que a crise durará entre 18 e 24 meses (onde será que ele viu isso? nos búzios, no tarô cigano, ou jogou I-Ching?). Então, já que qualquer um pode falar o que quer, o corpo editorial deste afamado blog também dá os seus pitacos:
Como todo mundo sabe, o epicentro da crise é no 1o. mundo: EUA, a maior parte da Europa Ocidental, e Japão: o Grupo-I. Em seguida, vem os BRIC (Brasil+Rússia+Índia+China), os países desenvolvidos de 2a linha (Canadá, Austrália, Espanha, Portugal etc.), os emergentes/emergidos (Chile, México, Coréia do Sul, África do Sul, Polônia, Grécia, Turquia etc.), e a moçada da OPEP, que compõem o que chamaremos de Grupo-II. E, lá no fim, quase não sentindo a crise, estão os países-satélite da economia mundial, como Bolívia, Paraguai, toda a América Central, a maior parte da África, as ex-repúblicas soviéticas (ex. Ossétia do Norte/Sul), a Coréia do Norte, o Afeganistão, o Irã, o Iraque, e as “notas de rodapé do mapa-múndi” (Ilhas maurício, Fiji e demais excentricidades), que são o Grupo-III. Como o que interessa mesmo é o equilíbrio relativo entre as economias, e os países do Grupo-I perderão mais que os do Grupo-II, que perderão mais que os do Grupo-III, quem vai se dar melhor com essa crise será, em ordem inversa, os países do Grupo-III e do Grupo-II. O fato é que os países do Grupo-III não têm condições de aproveitar a vantagem relativa, seja por questões políticas (com ou sem crise, Cuba não vai se tornar uma potência econômica tão cedo), seja por absoluta incapacidade econômica estrutural (como é que o Paraguai pode aproveitar a situação? exportando mais chá?). Logo, quem vai se beneficiar com essa crise no longo prazo serão os países do Grupo-II, exatamente onde estamos. “É nóis na fita, mano?” Talvez. O risco é tomarmos um trança-pé dos chineses ou do Putin (e que não é difícil para quem toma olé do Evo Morales).
Na foto acima, Nouriel Roubini explicando os fundamentos da MacroEconomia a duas jovens
Ηνωμένες Πολιτείες της Αμερικής
Logo após a independência estadunidense, houve um impasse na escolha da a língua oficial a ser adotada, com o grego sendo uma das opções mais bem cotadas, pois havia uma grande simpatia dos intelectuais da época pela cultura helênica – mesmo que todos eles se comunicassem em inglês mesmo. Acabou que não escolheram nenhuma (até hoje, os EUA não têm língua oficial, você acredita?), pois não se admitiu oficializar a língua do inimigo (a Guerra de Independência ainda era uma ferida aberta na sociedade da época), e a língua de Homero não seria exatamente prática, já que menos de 0,1% da população a conhecia. Isso tudo para perguntar:
Se entender a crise atual já está difícil, imagine se você tivesse que fazer isso lendo textos em grego?
leave a comment