É a confiança, estúpido!*
Já escrevi sobre o problema da confiança neste blog várias vezes (digite “confiança” na caixinha aí do lado e veja você mesmo), e volto a repetir: o problema da atual crise financeira (e, agora, econômica) é um só CONFIANÇA. Os emprestadores não empresatm porque não confiam que os tomadores irão pagar os empréstimos de volta; se um não empresta, o outro também não por que o risco aumenta; e se ninguém empresata, o tomador quebra, o que confirma a decisão inicial de não emprestar. É isso o que estamos vivendo. Como romper esse ciclo? Precisa acontecer algo que reverta as expectativas dos agentes econômicos – p.ex.: um novo cidadão ocupar o salão oval, com propostas de mudança e de quebra de vínculos com “o antigo”.
Hoje, o ex-ministro, ex-deputado e ex-croque Delfim Netto analisa a questão com brilho. Não gosto do Delfim, tanto quanto não gosto do Maluf. Mas, do mesmo jeito que achei a abertura da avenida Faria Lima genial para a cidade de S.Paulo, acho que as análises do Delfim são, na maior parte das vezes, muito bem feitas. Por isso, recomendo o artigo abaixo, publicado na Folha de hoje:
Insuficiente
AS MEDIDAS de socorro às atividades financeiras tomadas em todo o mundo desenvolvido e, com maior ou menor vigor, em todos os países emergentes, dão sinais que começam a funcionar. Isso se vê pela redução (ainda pequena) da taxa Libor dos juros nas transações interbancárias.
A crise que estamos vivendo simplesmente iluminou um fato conhecido desde sempre: a confiança entre os agentes é o ingrediente necessário à existência de toda a atividade econômica que se processa através dos mercados. Estes, por sua vez, só podem existir quando amparados num Estado capaz de garantir a propriedade privada que permite aos cidadãos apropriarem-se dos benefícios de sua liberdade de iniciativa e assegurar a execução dos contratos estabelecidos entre eles.
O problema da “confiança” é multifacetário (antropológico, psicológico, sociológico, econômico, teológico etc.). Já em 1979, Luhmann mostrou que esse conceito, fundamental para explicar o comportamento das sociedades tradicionais, era também central para entender o funcionamento das sociedades cuja complexidade de relações é crescente, a incerteza é generalizada, e os riscos, inevitáveis. Maximizando o reducionismo, podemos dizer que: 1º) a confiança envolve risco; 2º) o “principal” (quem confia) não tem condições de monitorar permanentemente o “agente” (em quem confia) e 3º) o “principal” não confia apenas no “agente”. Espera (confia) que o Estado o substitua no seu controle.
Quando, por qualquer motivo, desaparece a confiança, os sistemas financeiros e produtivo entram em colapso. O governo inglês foi o primeiro a reconhecer que a crise era algo mais profundo do que um problema de liquidez. Tratava-se da morte súbita da confiança, o fator catalítico que controla toda a atividade econômica, o que exigia uma ação enérgica e radical do Estado.
No Brasil, é preciso reconhecer que o governo agiu corretamente e com razoável rapidez, mas sem a radicalidade necessária. O que se fez até agora não será suficiente para minimizar o custo (inevitável) da retração mundial sobre a economia brasileira. É ilusão pensar que o crescimento de 2009 está escrito nas estrelas ou em 2008. Ele será o que soubermos fazer dele com inteligência e alguma ousadia.
O governo tem sido expedito, mas tímido e desajeitado, em dar o “conforto” ao setor privado para restabelecer a confiança geral. Isso é evidente no que se refere às instituições financeiras menores (mas não menos hígidas!) que financiam a pequena indústria e o pequeno comércio, responsáveis pela maioria dos empregos.
*Este trocadilho com o consagrado “é a economia, estúpido” é, para quem não se lembra, uma frase do principal marqueteiro do Bill Clinton. Clinton não sabia como enfrentar Bush (pai) quando tentou se eleger pela primeira vez. Bush acabara de ganhar a primeira guerra do Golfo – embora Sadam permanecesse no poder. O marqueteiro sacou que Clinton tinha de explorar as dificuldades econômicas do governo. Bingo! (fonte: Noblat, as usual).
Cooperação: manual do proprietário
Este é o 5o. artigo publicado na Você S/A, que explica diferentes maneiras de organização social cooperativa:
Lições do formigueiro
Tanto entre os animais (não-humanos) quanto entre os homens, a cooperação parece ser o fator-chave do sucesso. Golfinhos formam grupos para encurralar cardumes de peixes com resultados muito melhores que a caça individual. Chimpanzés formam bandos de mais de cem indivíduos que os protege contra predadores e bandos rivais. E a humanidade forma grupos de trabalho há muitos milhares de anos. Henry Ford revolucionou a indústria com o conceito de linha de montagem, que nada mais é do que uma nova forma de organizar a cooperação humana. Mas como convencer cada indivíduo a atuar cooperativamente como parte de um grupo? Por mais que o desempenho cooperativo de um grupo seja a opção mais interessante para a coletividade, os mecanismos do individualismo, da deserção e da trapaça tendem a trazer benefícios ainda maiores para cada indivíduo em particular.
Imagine que você faça parte de um grupo de caçadores aborígines. Vocês estão à caça de um animal de grande porte que irá matar a fome de toda a aldeia – um gnu, por exemplo. Para isto, é necessário que haja uma coordenação da equipe para cercar o bicho e possibilitar o seu abate. Entretanto, num dado momento você vê um coelho passando. Você sabe que um coelho é suficiente para matar a fome da sua família. Por outro lado, se você for atrás do coelho, toda a operação de caça pode naufragar se o gnu tentar escapar justamente pelo seu lado. Você também sabe que, mesmo com a cooperação de todo o grupo, as chances de pegar o gnu são muito menores que a sua possibilidade de sucesso individual com o coelho. Existe ainda a possibilidade de você cooperar com o grupo e esquecer o coelho – mas se algum outro componente do grupo for atrás do seu coelho, você vai ficar sem nada. O que fazer, então?
Segundo o conceito original da Teoria dos Jogos, a deserção seria a alternativa racional. Em um jogo de rodada única, o caçador que for atrás do seu coelho estaria exercendo a melhor opção. Mas na vida real, o que acontece com maior freqüência são situações de repetição do jogo, onde a cooperação mútua tende a trazer os melhores resultados tanto individual quanto coletivamente. Nos grupos humanos em geral – e no exemplo dos aborígines em particular – é essencial que se possa acreditar que cada membro irá se comportar cooperativamente. É a base de um conceito que costumamos chamar de confiança. Se todos tiverem a certeza que todos cooperam, será muito melhor o desempenho do grupo como um todo. O grande problema é convencer cada um dos componentes do grupo a cooperar mesmo em situações em que a deserção traz o melhor resultado individual imediato.
Em termos de cooperação, entretanto, nada se compara ao que acontece com as formigas. Estes insetos têm uma organização sem hierarquia formal definida, sem mecanismos coercitivos, sem punições ou recompensas e sem estruturas de comando que funciona maravilhosamente bem. Todas as formigas cooperam e colocam a sobrevivência do formigueiro acima de sua própria sobrevivência. Não existe deserção individual entre as elas. Formigas jogam segundo a estratégia do “coopere sempre” há milhões de anos com excelentes resultados. Mas não é isto que acontece entre os humanos, que sempre estão à mercê de uma traição de outra parte. Os seres humanos precisaram desenvolver mecanismos para estimular a cooperação mútua baseado na punição.
Para que a sociedade humana funcione, foi necessário criar o mecanismo do ostracismo, em que o indivíduo não-cooperativo é excluído do grupo. Para que se saiba quem é que não coopera – e, portanto, quem é que deve ser mantido fora do grupo – criou-se um outro mecanismo denominado estigmatização. O estigma é uma marca que o indivíduo condenado ao ostracismo carrega para ser facilmente identificado. No Oriente Médio, a amputação das mãos é um mecanismo usado até hoje para estigmatizar um ladrão. Uma pessoa maneta é facilmente reconhecida como uma ladra e, com isto, toda a sociedade sabe que ela não é digna de confiança. Ao contrário das formigas, nós só conseguimos obter a cooperação recíproca na marra. Se nós cooperássemos sempre espontaneamente, não haveria a necessidade de tantos mecanismos punitivos, como leis e contratos.
O maior problema do mecanismo do estigma e do ostracismo é que o indivíduo é impedido de permanecer no grupo por um comportamento passado, mas nada garante que isto se repetiria no futuro. Um caçador pode eventualmente desertar do grupo para caçar o coelho porque sua mulher acabou de parir um bebê e ele não podia prescindir de alimento naquele momento específico. Mas, no futuro, aquele caçador poderia voltar a se comportar cooperativamente e fazer a diferença para a sobrevivência do grupo, coisa que não vai ser possível se ele for estigmatizado e condenado ao ostracismo. O processo de estigmatização faz com que a sociedade dirija somente olhando no retrovisor e não para frente. Parece que temos muito a aprender ainda com as formigas.
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